Atualmente, ela
sentava nos bancos individuais do ônibus. Espreitava através de grandes lunetas, de uso meramente decorativo, e atrás de mechas mal escovadas a
escorrer como sedosa cortina, os trôpegos ingressantes da breve jornada. A
escolha do assento isolado não era caso de incômodo, tampouco pragmático:
desceria somente no ponto final, logo, não correria o risco de ficar presa e
ter que pedir licença a pernas espaçosas que lhe trancassem a passagem. Afinal,
era uma mocinha mirrada e quase todos constituíam um obstáculo desafiador.
Há alguns anos frequentava a mesma
linha, de manhãzinha, subindo na primeira parada em frente à universidade, sendo
uma das primeiras a ver os lugares todos vagos, e observar, com certa
culpa, o carro atulhar-se, ponto a ponto, até expelir dezenas de
destinos ao terminal, quarenta minutos depois. Naturalmente, gostava das
janelas, ou, como batizava secretamente, "microscópio de gente".
Gostava de como os passantes da calçada inflavam o tórax e ensaiavam andares de
passarela quando o carro parava em estações; eles sabiam que tinham uma
plateia itinerante. Além, recostar a cabeça e sentir o formigamento do vidro
quando os pneus amaciavam o asfalto irregular era como uma massagem gratuita.
No princípio, não se importava em
escolher os bancos duplos e ficar longe do seu instrumento vítreo de examinar
as vidinhas lá fora. Sentia certa euforia quando o ônibus fazia uma de
suas paragens, e rostos, alguns inéditos, outros regulares, emergiam na escadinha
ao lado do motorista. Gostava de investigar um a um e decifrar-lhes os motivos
enquanto trocavam dinheiro com o cobrador; tentava descobrir qual
escolheria o assento ao seu lado. Porém, assim que a máquina arrancava, e
a catraca cessava a sonora giratória, fixava-se para fora da janela, com olhos
voltados às lâminas, mas a mente alerta ao interior, como a
aumentar o suspense. O assento permanecia vazio, entretanto, até que todas
as filas duplas com suas respectivas janelas fossem ocupadas. Então, os
corredores eram escolhidos a contragosto. Finalmente, sempre olhando para
fora, sentia a presença, o impacto, mesmo a olência, a leve lufada de
alguém que se apressava a centímetros do seu ombro; muitas vezes
encostavam nela, mas não se importava, pensando: quão curiosas são
as oportunidades em que as pessoas se tocam!
Em locais repletos, onde a falta de espaço impele os convivas a forçadas aproximações, sentir na
perna ou no braço o calor de outro ser humano é inteiramente
aceitável; bem como o é, por ordem de etiqueta, encostar a bochecha
em outra bochecha, enlaçar a palma em outra palma em cumprimentos
cotidianos; mas quantas vezes a necessidade do toque era um desejo condenado
fora das respectivas convenções!
A mudança de comportamento fora
medida recente. Revezava as cadeiras unitárias desde que notou o cuidadoso
escrutínio dos passageiros, à procura de assentos isolados e, quando não havia
opção, a esforçada indiferença que exibiam aos seus companheiros de viagem,
rapidamente sacando seus telefones, não raro acoplados a fios que lhes tampavam
a audição, assim, portanto, vedando o espírito.
Em mais de três anos, sequer uma vez
alguém iniciara uma conversa com ela, nem ela o fizera; temia que fosse mal
interpretada ou, pior, receava apresentar-se como estorvo. Restava-lhe
fantasiar ocasiões diversas em sua mente, onde um interlocutor tomava a figura
de um inteligente rapaz, uma curiosa criança acompanhada de um progenitor
negligente, um sábio idoso farto de causos de juventude, todos lhe dando
atenção. Inúmeras vezes estas embalagens rompiam, de fato, da frente do
coletivo, mas, ao atravessarem desdenhosos por ela, provavam-se destituídos de
conteúdo.
Ao observar um casal de amigos,
naquele dia, uma onda nostálgica lhe reavivou a memória. A menina apontava
aleatoriamente para a rua e o amigo, respectivamente, fazia um comentário que
engatilhava gargalhadas. Em tempo de ginásio, ela colecionara amizades como
aquela: rapaz e moça, ambos em sincrônico compartilhamento de gestos, porém
pechosa autenticidade de sentimentos; risadas espalhafatosas e provocações
brincalhonas escondiam o subjacente anseio. A ardente
necessidade de manter um ao outro próximo era disfarçada diariamente,
através de elogios esporádicos e contatos intermitentes, cada um carregado de
invisível declaração.
Quando um senhor de bengala subiu
pela porta do meio, curvado como se inspecionasse o chão, o menino comprimiu os beiços e as pálpebras, emulando uma
caricatura que disparou nova sessão de risadas da menina. Ela juntou-se a ele
na imitação, e ambos seguiram amortecendo risinhos enquanto um homem de calças
sujas de tinta dava seu lugar para o idoso cidadão. Fizeram nova vítima ao
repararem uma obesa mulher com sacolas nas duas mãos sofrendo para não
entalar na catraca estreitíssima. Sentiu inevitável pena.
Abandonou o casal a suas abafadas
pilhérias e repousou a atenção no jovem cobrador de cabelos arrepiados. Ele
dava instruções para um menino de compleição confusa, que vinha logo atrás da
senhora obesa. Notou prontamente que o rapaz era formoso, e sua atabalhoada
essência conferia-lhe charme a mais. Admirou-o mormente quando este
voluntariou-se para segurar as sacolas enquanto a pesada passageira fazia um
verdadeiro contorcionismo para galgar as grades de liberação.
Não havia mais assentos para eles,
portanto, o rapaz teve de parar no corredor, próximo a ela. Instintivamente,
ela se recolheu quando a brisa de seu movimento deslizou sobre seus antebraços.
Ainda sentiu um breve perfume de adolescência. Novamente, traindo aos
recém-adotados preceitos de ermitã, desejou que o moço lhe puxasse conversa.
Mas o ônibus estava demais cheio, e qualquer diálogo seria ouvido por meia
dúzia de almas, afora o constante ronco do motor e os ruídos dos freios
desgastados que lhes forçariam a erguer a voz.
Admoestou-se por mergulhar em
hipóteses quiméricas, voltando a mirar os amigos ridentes. Estavam em raro
momento de paz, cada qual com a cabeça baixa, carregando uma fleuma incompatível, certamente transviados por seus aparelhos móveis. Quando o ônibus desacelerou, a menina puxou o cadarço do capuz do amigo e ambos se puseram em movimento para descer. Aos tropeços e encontrões, alcançaram a porta central, por onde havia adentrado o velho de bengala.
Foi assim que o rapaz confuso e formoso
a tocou. Quando o casal se espremeu para cair na porta, ele teve de dar um
passo à frente. Enquanto o fazia, olhava para trás para se certificar de que
havia deixado espaço suficiente para os barulhentos passantes. Ao som das gargalhadas
derradeiras dos dois, ela sentiu a pele morna das costas da mão do menino
contra sua bochecha. Contudo efêmero, o toque era doce e terno, malgrado a ausência de intenção.
Ele sequer se deu conta. Ela se
arrepiou e tremeu. Logo o contato se desfez e o ônibus retomou sua circular
empreitada. Na mesma parada em que os amigos desceram, subiram outros tantos
viajantes, e logo o rapaz teve de se apressar para o fundo do ônibus para
dar lugar aos que chegavam. Quão curiosas são as oportunidades em que
as pessoas se tocam!