As folhas dos bordos já
estavam quase inteiramente desintegradas. As mais vigorosas – ou talvez
aquelas que brotaram tardiamente – ainda carregavam uma nuance escarlate, e cada pínula de um daqueles exemplares palmiformes ostentava a resiliência que a natureza domina, e que o homem emula em pavorosas réplicas. Mas cedo elas seriam soterradas pela fina e indolente neve que precipitava,
ininterrupta, no jardim lá fora. O atraso foliar determinava o desditoso caráter da planta, onde uma altercação muito bem qualificada divisava os desafiantes: os esgalhos temporões e os ramos serôdios.
Dentro da cabana, à luz lânguida de uma luminária de mesa, a fumacinha do café ascendia diligentemente ao teto de madeira, liberando formas e contrastes, ganhando corpo, dançando um minueto etéreo; esvaecendo, porém, antes de alcançá-lo, como uma alma que passara a vida em exímia conduta, mas que na hora da extrema-unção, caíra em tentação e pecara.
Dedos jovens e femininos deslizaram na asa da xícara e ela tomou um gole. O líquido desceu com selvageria, como que acordando todas as partes dormentes de seu corpo, despertando-a dos ensaios mentais que subjugavam seus anseios.
Devia iniciar logo seu projeto.
Alcançou a caneta preta que resfolgara tempo demais durante sua entorpecida hesitação. Pegou uma folha pautada e já meio amarelada que pode achar na última gaveta da escrivaninha e começou a escrevinhar sua mensagem:
Ei, você,
Não tenho certeza se vai querer ouvir de mim depois de tanto tempo. Não estou certa sequer de por que estou escrevendo. Acho que é para finalmente admitir algo que fui covarde demais no passado para dizê-lo. Mas eu também não tinha certeza sobre onde você estava... e não quero dizer fisicamente, mas naquele limbo emocional frequente em amantes medrosos. Afinal de contas, sempre fomos tão bons em conversar sobre tudo, mas, quando o assunto era nós, conseguíamos desviá-lo como se algo pontiagudo fosse nos ferir. Chegamos, de fato, alguma vez a dizer uma coisa mais profunda para o outro do que exaltações efêmeras? Lembro-me, eu sei, que você estava sempre me elogiando, e talvez estes gestos tenham sido o seu jeito de demonstrar a sua parcela em nossa relação: novamente, fui uma tola em não desconfiar.
Você me disse certa vez que achava que nunca tinha se apaixonado de verdade, apenas pela ideia de estar apaixonado. Você dizia que, com as mulheres que cortejou, não conseguia imaginar uma vida juntos, não podia olhá-las demais nos olhos apenas pelo mesmerismo da contemplação, da idolatria; mas o jeito como você me olhava era exatamente assim.
Eu te disse que fui, apenas uma vez, apaixonada perdidamente, e que a ferida ainda não havia cicatrizado completamente, que toda vez que eu via ele era como se minha alma desse um salto à lua, deixando-me destituída de forças, e pálida feito um fantasma. Lembro-me do lapso de desapontamento em sua expressão quando lhe contei essa história, e como seu comportamento mudou dali em diante: menos jocoso, mais alheio. E eu me senti culpada – eu acho que, talvez, eu tenha percebido o que estava acontecendo.
Eu queria dizer, eu realmente queria dizer que achava que finalmente estava me curando. Eu estava sentindo mais uma vez uma pequena fagulha, bem como da vez anterior, ganhar força na mesma pilha de cinzas que o outro deixara; e conforme os dias foram passando, você, com seu jeito manso, foi atirando alguns galhos e gravetos, e a fagulha se tornou brasa, e a brasa tornou-se chama e, eventualmente, ao final do verão, eu estava ardendo como o sol ao zênite.
Nunca dissemos um para o outro o que estava acontecendo. No começo, mal nos falávamos e sequer nos abraçávamos como cumprimento e despedida. Mas conforme nossa amizade crescia, os abraços se alongavam, ocasionais beijos eram introduzidos nas bochechas, e nunca vou esquecer da vez em que você, deixando o trem inesperadamente, deu-me um beijo terno na testa e disse simplesmente: “adeus”.
Lembro-me do meu desespero: achei que nunca mais iria vê-lo, pois o gesto fora tão... novo. Mas no dia seguinte, lá estava você, jubiloso e prazenteiro, e o beijo na testa, daquele dia, fez-me perder o sono; o que queria dizer?
Houve momentos – ah, e quantos inúmeros momentos! – em que você me olhava como a quem observa uma criança brincando, um idoso gargalhando, um casal de mãos dadas. Estes momentos, eu jurava: estávamos no limite da aproximação, e eu nunca podia dizer se verdadeiramente aconteceria, algum dia. Infelizmente, não foi assim.
Tantas noites sonhei com esta cena, tantos sonhos foram interrompidos no exato momento do... contato. Então eu fantasiava, pouco antes de dormir, mas não conseguia me satisfazer com imagens embaçadas e ocasionalmente caía no sono, sua imagem sendo a última consciente. Olhando para trás, percebo que nossa curta história de verão foi uma linda jornada e me parece que toda a estação transcorreu apenas na sua presença: foi o nosso verão. Mas não posso deixar de pensar, também, que foi o verão que desperdiçamos: a estação que fizemos quase tudo certo, exceto deixar um ao outro ouvir a declaração que ambos repetíamos em nossas cabeças constantemente enquanto estávamos juntos: eu acho que estou apaixonado por você.
Bem, eu agora sei que eu te amo.
O outono transcorreu como a uma semana, tamanha a saudade que me toma. Ocupei a maior parte do tempo fora da realidade, em um mundo paralelo, em estranhos devaneios. Além do nosso verão, tomou-me todo este outono para eu ganhar coragem de escrevê-lo.
Apesar de eu ter recusado visitá-lo algumas vezes, eu sei onde você mora, sei o seu endereço e sei que continua vivendo naquela casinha verde até hoje.
O carteiro deve passar daqui a algumas horas e recolher esta carta, e você a deve ler em alguns dias.
Apenas espero que não seja tarde demais.
Com amor,
H.
Ela leu e releu as caleidoscópicas palavras, até a luz da lâmpada não ser mais necessária. Pequenos e tímidos raios carmesins invadiam a cabana e traziam consigo sua tépida contenda contra o ar hibernal. Na carta, algumas letras foram borradas: duas ou três lágrimas fugitivas. Quando o sol já estava mais sociável e andejava, sôfrego, pelas cercanias do firmamento, ela dobrou a carta duas, quatro vezes, introduziu-a em um envelope amassado e escreveu o endereço, mas não colocou o remetente.
Quase sem forças, levantou da cadeira e cada músculo teso de seu corpo resistia na rigidez de alguém que passara muito tempo imoto. Deslizou os lábios nas extremidades da aba do sobrescrito. Um beijo cerimonioso, que ela tanto anelara, fora dado no papel, uma combinação assimétrica entre um polímero vegetal e um tecido epitelial. Depois guardou-o de volta na última gaveta, deixou a caneta onde sempre estivera e esvaziou a xícara de café gelado na pia, antes de ir deitar e descansar durante todo o dia.
Ela precisava repousar.
No cair da noite, tinha uma carta para escrever.