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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Fura-bolos


Seu alicate era quase uma extensão etérea do próprio braço. Um traço angelical que se somou quando primeiro viu seu pai cortando fios de cobre na garagem de casa. Era um pirralho, mas a vontade de destrinchar os objetos mais fortes e vê-los ceder ao instrumento, com a ajuda do braço humano, caminhou com ele pelo resto da adolescência. E quando passou o início da vida adulta e perdeu muitos cabelos, já tinha fabricado seu próprio arsenal de ferramentas de corte. Iam desde tesouras até morsas. Mas nada se comparava ao alicate. Fizera-o com vinte e dois centímetros de comprimento, cada barra da base feita de ferro coberto por uma borracha vermelha tinha quatro centímetros de diâmetros, havia saliências antiderrapantes, para quando o suor da excitação inundasse as palmas das mãos, isso não interferisse na ação de esmiudar tudo que quisesse. A diferença estava na área do corte, que era reforçada e feita de aço temperado, e o corte seria rápido como uma guilhotina, preciso como um bisturi. O eixo era preso por um bravo parafuso dentado de titânio, e sua maleabilidade era impressionante. Já havia feito tudo que pudesse ali, e enquanto estudava novas técnicas na revista cirúrgica e materiais nos catálogos de construção, malhava infatigavelmente os braços, ombros e tórax. Afinal dali sairia toda a força. Sua silhueta era descomunal, tendo crescido a ponto de quase atingir dois metros de altura, e pesar cento e quinze quilos. Treinava a mira e a agilidade em pedaços de carne que recebia do açougue. Montara sua própria área na garagem, onde interpretava uma sala de cinema, o banco de um banco, a poltrona de um ônibus, e deitava ali uma pata suína descongelada. Sentava. Mantinha-se implacável, parado, então dava o bote, o alicate saindo debaixo da casaca, os dentes de metal como as pinças de um alacrau, ganhando o tecido em milissegundos. Mas havia também os testes de aproximação sorrateira, onde pendurava a carne na cabeceira de um encosto e passeava pelo ambiente até chegar tão perto que não era necessário bote algum. Apenas tirava o alicate da casaca, posicionava-o, e o corte estava feito. Haveria sempre de decepar completamente o membro, ou voltaria para casa desolado, se auto-flagelando com beliscões em baixo da roupa que chegavam a arrancar filetes de sangue. Suas feridas estavam todas saradas, dada à sua destreza atual. Quando chegava a hora de atrever-se fora da placidez de sua garagem, vestia os coturnos número quarenta e oito do tempo de soldado, a calça preta e impermeável de motoqueiro, uma camisa qualquer e a casaca de couro preto. O capacete lhe servia de disfarce, o visor com adesivo fumê tinha duas órbitas estrategicamente recortadas para a melhor visão do que estava fazendo. Desta forma ele via tudo, e quem quer que fosse atacado notaria no máximo a cor de seus olhos, e teriam de dotar de olhos de coruja. Os jornais o chamavam de Fura-bolos, dada sua preferência pelo dedo indicador. Gostaria, sim, que o chamassem Mata-casais, ao seu desejo de decepar os dedos anulares, mas era apenas muito difícil acertá-los, junto aos dedos médios. Conseguira a proeza, porém, quando um rapaz de anatomia longa estendera o braço pela poltrona da namorada no cinema, e o dedo que carregava o anel ficara na posição perfeita para o bote. Clac! Sem mais ‘aceite este anel como símbolo do meu compromisso e de meu amor’. Divertia-se particularmente com a retardada reação de dor de suas vítimas. Recolhiam o braço como um relâmpago, como se alguém os tivesse esbarrado um pouco mais forte, a expressão de interrogação nas sobrancelhas, até que sentiam o líquido quente, a ardência, e se davam conta de que faltava-lhes um dedo. Era tudo que se permitia regozijar, dando procedência ao sistema de fuga. Trinta e quatro dedos era sua conta, e agora tinha outros planos em mente. Os dedos estavam enjoativos, portanto esta noite se preparava para cortar algum lóbulo de orelha, ou quem sabe apenas um naco de carne de peles despidas.

sábado, 16 de junho de 2012

O Homem Que Esqueceu Ray Bradbury

Um conto traduzido de Neil Gaiman.

O título é ruim, na minha opinião, ele estreita de modo enganoso a um único tema o que é magnificamente um assunto universal: a pequenez da nossa memória, e como ela se apaga, vão-se os anos...

O Homem Que Esqueceu Ray Bradbury não é só um tributo, é um conto maravilhoso.

E aqui vai:


"Eu estou esquecendo coisas; o que me assusta.
Estou perdendo palavras, embora não esteja perdendo conceitos. Eu espero que não esteja perdendo conceitos. Se estou perdendo conceitos, não estou ciente disso. Se estou perdendo conceitos, como saberia?
O que é engraçado, porque minha memória sempre foi tão boa, tudo estava lá.
Certas vezes minha memória era tão boa que eu chegava a pensar que podia lembrar de coisas que não conhecia ainda.
Lembrando do futuro...
Acho que não existe uma palavra para isso, existe? Lembrar de coisas que não aconteceram ainda. Eu não tenho aquela sensação de procurar na minha cabeça por uma palavra que não está lá, como se alguém tivesse vindo e pegado ela durante a noite.
Quando eu era um jovem garoto eu vivia numa grande casa compartilhada. Era um estudante na época. Nós tínhamos nossas próprias gavetas na cozinha, ordenadamente marcadas com nossos nomes, e nossas próprias gavetas na geladeira, onde deixávamos nossos próprios ovos, queijo, iogurte, leite. Eu era sempre meticuloso em usar somente minhas provisões. Os outros não eram tão... aí. Perdi uma palavra. Alguma que signifique "assíduo seguidor das regras". As outras pessoas na casa... não eram. Eu ia até a geladeira e meus ovos estavam extintos.
Estou pensando em um céu repleto de espaçonaves, tantas delas que parecem uma praga de gafanhotos, o prata contrastando com o lilás luminoso da noite.
Coisas desapareciam do meu quarto naquele tempo, também. Botas. Lembro de minhas botas indo. Ou "sendo levadas", eu diria, já que eu nunca as flagrava no ato de ir embora. Botas não "se vão", simplesmente. Alguém "se vai" com elas. Assim como meu grande dicionário. Mesma casa, mesmo período no tempo.
Fui até minha estante perto do meu rosto (tudo ficava do lado da minha cama - era o meu quarto, mas não era muito maior que um guarda-louças com uma cama dentro). Eu fui até a estante e o dicionário havia sumido, apenas um buraco do tamanho de um dicionário ali, para mostrar onde ele não estava.
Todas as palavras e o livro onde elas vinham, desaparecidos. Durante o mês seguinte eles pegaram ainda meu rádio, uma lata de espuma de barbear, um bloco de notas, e uma caixa de lápis. E o meu iogurte. E, eu descobri no meio de um blecaute, minhas velas.
Agora estou pensando em um garoto com tênis novos, que acredita que pode correr para sempre. Não, isso não é dá-los para mim. Uma cidade seca onde chovia para sempre. Uma estrada através do deserto, onde as pessoas boas veem uma miragem. Um dinossauro que é produtor de cinema. A miragem era a Câmara dos Prazeres de Kublai Khan.
Não...
Às vezes quando as palavras se vão eu consigo achá-las perambulando-as por outra direção. Digamos que estou procurando uma palavra - estou discutindo sobre os habitantes do planeta Marte, digamos, e me dou conta de que a palavra para eles se foi. Posso também perceber que a palavra desaparecida aparece numa sentença ou num título. As Crônicas __________. Meu __________ Favorito.
Se isso não captura ela, eu circulo a ideia. Homem verde e pequeno, eu penso, ou alto, de pele escura, dócil: Escuros eles eram e de olhos dourados... e de repente a palavra Marcianos está esperando por mim, como um amigo ou uma amante ao final de um longo dia.
Eu saí daquela casa quando meu rádio sumiu. Era muito desgastante, a lenta desaparição das coisas que pensava serem seguramente minhas, item por item, coisa por coisa, objeto por objeto, palavra por palavra.
Quando eu tinha doze anos um homem velho me contou uma história que nunca mais esqueci. Um pobre homem viu-se só numa floresta no cair da noite, e ele não tinha consigo nenhum livro de orações para rezar suas orações noturnas. Então ele disse, "Deus que sabe de todas as coisas, não tenho nenhum livro de orações e não sei nenhuma de cabeça. Mas você conhece todas as orações. Você é Deus. Então vou fazer o seguinte. Vou dizer todo o alfabeto, e vou deixar você colocar as letras em ordem."
Há coisas que se perderam da minha mente, e isso me assusta. Ícaro! Não é como se tivesse esquecido todos os nomes. Eu lembro de Ícaro. Ele voou perto demais do sol. Nas histórias, porém, valeu a pena. Sempre vale a pena tentar, mesmo se você falhar, mesmo que caia como um meteoro para sempre. Antes ter flamejado na escuridão, ter inspirado outros, ter vivido, do que ter sentado no escuro, amaldiçoando as pessoas que emprestaram, mas não devolveram, suas velas.
Eu já perdi pessoas, no entanto.
É estranho quando acontece. Eu não as perco, verdadeiramente. Não do mesmo jeito que alguém perde os pais, nem mesmo quando criança, quando você pensa que está segurando a mão de sua mãe numa multidão e então olha pra cima, e não é sua mãe... ou mais tarde, quando você tem que achar palavras para descrevê-los num funeral ou memorial, ou quando está espalhando as cinzas num jardim de flores ou no mar.
Eu às vezes penso que gostaria de ter minhas cinzas espalhadas numa biblioteca. Mas então os bibliotecários teriam de chegar mais cedo na manhã seguinte para varrê-las de novo, antes que as pessoas chegassem.
Eu gostaria que minhas cinzas fossem jogadas numa biblioteca ou, possivelmente, num parque de diversões, onde você brinca no... na... a...
Perdi a palavra. Carrossel? Montanha-russa? A coisa que você brinca, e volta a ser criança. A Roda Gigante. Sim. Há outra festa que vem para a cidade, também, trazendo o mal. "Ao estalar dos meus dedos...".
Shakespeare.
Eu lembro de Shakespeare, e lembro do nome dele, e quem ele foi e o que ele escreveu. Ele está a salvo, por enquanto. Talvez existam pessoas que esquecem de Shakespeare. Eles teriam que falar sobre "o homem que escreveu 'ser ou não ser'" - não o filme, com o Jack Benny, cujo nome real era Benjamin Kubelsky, que foi criado em Waukegan, Illinois, uma hora mais ou menos para fora de Chicago. Waukegan, Illinois, foi posteriormente imortalizada como A Cidade Verde, Illinois, numa série de histórias e livros por um autor americano que deixou Waukegan e foi viver em Los Angeles. Refiro-me é claro, ao homem em que estou pensando. Posso vê-lo na minha cabeça quando fecho os olhos.
Eu costumava olhar as fotografias dele, na parte de trás dos seus livros. Ele parecia meigo e parecia sábio, e parecia bondoso.
Ele escreveu uma história sobre Poe, para impedir que Poe fosse esquecido, sobre um futuro onde queimariam livros e os esqueceriam, e na história nós estamos em Marte, embora possamos estar também em Waukegan ou Los Angeles, como críticos, como aqueles que oprimem ou esquecem os livros, como aqueles que pegariam as palavras, todas as palavras, dicionários e rádios cheios de palavras, como aqueles que entram numa casa e são assassinados, um por um: por um orangotango; por um Poço e um Pêndulo; pelo amor de Deus, Montressor...
Poe. Eu conheço Poe. E Montressor. E Benjamin Kubelsky e sua mulher, Sadie
Marks, que não tinha relação nenhuma com os irmãos Marx e que atuou como Mary
Livingston. Todos estes nomes em minha mente.
Eu tinha doze anos.
Eu tinha lido os livros, tinha visto o filme, e o momento da queima do papel foi o memento onde eu soube que teria de lembrar daquilo. Porque as pessoas teriam de lembrar de livros, se outras pessoas os queimassem ou esquecessem.
Nós vamos compromissá-los com a memória. Nós nos tornaremos eles. Nos tornaremos autores. Nos tornaremos o livro deles.
Peço desculpas. Eu perdi algo ali. Como um caminho em que estava seguindo e terminou sem saída, e agora estou sozinho e perdido na floresta, e estou aqui e eu não sei mais onde aqui é.
Você precisa aprender uma peça de Shakespeare; Vou lembrar de você como Titus
Andronicus. Ou você, amigo, você poderia aprender um livro de Agatha Christie;
Você será O Assassinato no Expresso do Oriente. Outro alguém pode aprender os poemas de John Wilmot, Conde de Rochester, e você, quem quer quer você seja, lendo isso, você pode aprender um livro de Dickens, e quando eu quiser saber o que aconteceu com Barnaby Rudge, eu irei até você. Você pode me contar.
E as pessoas que queimassem os livros, as pessoas que pegassem os livros das prateleiras, os incendiários e os ignorantes, os com medo de palavras e fábulas e sonhos e Halloween e de pessoas que tenham tatuado seus corpos com histórias e Cara! Você Consegue Cultivar Cogumelos No Seu Porão! enquanto suas palavras, que são pessoas, que são dias, que são minha vida, enquanto suas palavras sobreviverem, então você viveu e você teve importância e você mudou o mundo e eu não consigo lembrar seu nome...
Eu aprendi seus livros. Gravei-os em minha mente. No caso de os incendiários virem para a cidade.
Mas quem você é se foi. Eu espero que volte para mim. Assim como eu esperei pelo meu dicionário ou pelo meu rádio, ou pelas minhas botas, e com um resultado medíocre.
Tudo que tenho agora é o espaço em minha mente onde você costumava ficar.
E não estou tão certo mesmo quanto a isso.
Eu estava conversando com um amigo. E eu disse, "Essas histórias lhe são familiares?" contei a ele todas as palavras que conhecia, aquelas sobre monstros voltando para casa, para a casa com a criança humana dentro, aquelas sobre o vendedor relâmpago e o estardalhaço perverso que o seguiu, e os
Marcianos e suas cidades de vidro estilhaçadas e seus canais perfeitos. Eu disse a ele todas as palavras, e ele disse que nunca as havia escutado. Que elas não existiam.
E eu me preocupo.
Receio ter mantido elas vivas. Como as pessoas na neve no final da história, andando para frente e para trás, lembrando, repetindo as palavras dos contos, tornando-os reais.
Eu acho que é culpa de Deus.
Quero dizer, não pode se esperar que Ele lembre de tudo, Deus não pode.
Camarada ocupado. Então talvez ele delegue coisas, às vezes, diga apenas,
"Você! Eu quero que você lembre das datas da Guerra dos Cem Anos. E você! você lembra do ocapi, que é uma mistura de girafa com antílope. Você, lembre-se de Jack Benny que era Benjamin Kubelsky de Waukegan, Illinois." E então, quando você esquece das coisas que Deus o imcubiu de lembrar, BAM! Adeus ocapi.
Apenas um buraco em forma de ocapi no mundo. Adeus Jack Benny. Adeus Waukegan.
Apenas um buraco em sua mente onde costumava estar uma pessoa ou um conceito.
Eu não sei.
Eu não sei onde procurar. Terei eu perdido um autor, assim como certa vez perdi um dicionário? Ou pior: Teria Deus me dado uma simples tarefa, e agora eu a descumpri, e por eu ter esquecido está banido das estantes, desaparecido das obras de referência, e agora só existe em sonhos...
Meus sonhos. Eu não conheço os seus sonhos. Talvez você não sonhe com uma savana que é apenas um papel de parede mas que devora duas crianças. Talvez você não saiba que Marte é o Céu, aonde nossos amados finados vão para nos esperar, e depois nos consumir durante a noite. Você não sonha com um homem que é detido pelo crime de ser um andarilho.
Eu sonho essas coisas.
Se ele existiu, então eu o perdi. Perdi seu nome. Perdi os títulos de seus livros, um por um por um. Perdi as histórias.
E tenho medo de que eu esteja ficando louco, porque não posso estar apenas envelhecendo.
Se eu falhei nessa simples tarefa, oh Deus, então pelo menos me deixe fazer isso, que você entregue as histórias de volta para o mundo.
Porque, talvez, se isso funcionar, eles vão lembrar dele. Todos eles vão lembrar dele. Seu nome irá mais uma vez tornar-se sinônimo de pequenas cidades americanas no Halloween, quando as folhas deslizarem pelas calçadas como pássaros assustados, ou sinônimo de Marte, ou de amor. E o meu nome será esquecido.
Estou disposto a pagar esse preço, para que o espaço vazio na estante de livros da minha memória possa ser preenchido novamente, antes que eu vá.
Querido Deus, escute minha prece: A... B... C... D... E... F... G..."