Descobri um novo som. Não, não
descobri, inventei-o. Enfadavam-me qualquer e todos os outros barulhos vulgares
que se acham por aí. Não citarei tons, pois estes todos já ouvi e são milhões.
Surpreendi-me quando, depois de buscar incansavelmente novos ritmos, esgotei as
fontes musicais. E todos os tiques e baques horrendos da rua, e todo farfalhar
de plantas, e gritos do vento, choros dos céus, começaram a se tornar
insuportáveis. Então pensei, pensei, e dediquei-me a criar um novo instrumento
que produzisse um som único. Fico grato por ter tido sucesso. O instrumento está
comigo, agora, ao meu lado, e posso até descrevê-lo, mesmo sabendo que minhas palavras
não serão suficientes para as cabeças conceberem seu formato. Não é de sopro,
nem de corda. Não é chocalho e muito menos meros batuques em tambores ou
metais. Meu som insólito ativa-se pelo movimento dos braços, com grande ajuda
das pernas. Mas tem de ser rápido, e requer muito estudo e dedicação. Creio que
só eu hei de tocá-lo nesta vida, neste tempo. Aprendi e não tenho paciência
para ensinar. É bem provável que vá para o túmulo comigo, e o epitáfio será seu
mudo invólucro. Vou dizer do que é feito, depois discorro sobre seu som. Tem
peças de madeira pequenas e curvas, com furinhos onde passam o ar ao movimento,
como o rasgar leporino de uma vara de marmelo. Nestas, que dei o nome de
Degolas, vão presos arames em espiral, para mantê-las presas e, principalmente,
servir de mola às Borcas. As Borcas são planas e de ferro trabalhado, tão leves
que se pode carregar as quatro em dois dedos. Uma vez impulsionadas pelos
arames/molas, as Borcas atingem a borracha do Espotilho, produzindo um dos sons
mais suaves que o ser pode escutar. O Espotilho é de couro bovino, repleto de relevos
e, dependendo de onde as Borcas empurram a borracha, algum lugarzinho do Espotilho
revela outro som. Por fim, para unir Degolas, Borcas, Espotilho e arames,
barbantes fortificados com cola e resina de pinheiro costuram o instrumento, e
por eles se conduz a música. Quando o toco, danço tanto, giro, chuto e soco,
que me sinto um boneco de ventríloquo. Ainda não sei descrever seu som, mas é
algo parecido com o coaxar dum sapo ao resmungo dum camelo cansado. Como todo
instrumento, ele tem um som único, o som insólito que inventei, mas há suas
variações, que me possibilitam criar diversas melodias. Quando toco A Melodia
das Duas Cordas, o grito do trompete me vem como uma vaga lembrança, mas nada
mais que isso, uma leve lembrança. Às vezes tiro do meu instrumento um décimo
de grau do apito dum trem, e, com mais uma volta no barbante cinco, crio o som
das criaturas da noite. A Melodia Insólita é minha preferida, e, por ter
trabalhado nela por trinta anos, considero-a minha magnum opus. Começa com um
assovio humano, não meu, mas do instrumento, e sua cadência aumenta para algo
parecido com o Ghu Zheng chinês, até atingir o Som Insólito. Explicá-lo seria
como entender o funcionamento do Amor. Então proponho: Explica-me o que é o
Amor, e te fascino com meu novo som.
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