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domingo, 24 de junho de 2018

"A Dream", poema de Edgar Allan Poe traduzido


Um Sonho

À visão da noite escura
Eu sonhei com o prazer vencido -
Mas um sonho desperto de vida e alvura
Deixou-me de coração partido.

Ah! O que como um sonho diurno
Para ele cujos olhos agarrados
Ao clarão envolto ao seu turno
Voltam às coisas do passado?

Aquele sonho santo - aquele sonho santo,
Enquanto todo o mundo, então censurado,
Alegrou-me como um adorável encanto
Um espírito-guia abandonado.

O que, porém, naquela luz, tão trêmula e distante,
entre noite e tempestade -
O que poderia ser mais brilhante
Na estrela solar da verdade?

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Passageira

Atualmente, ela sentava nos bancos individuais do ônibus. Espreitava através de grandes lunetas, de uso meramente decorativo, e atrás de mechas mal escovadas a escorrer como sedosa cortina, os trôpegos ingressantes da breve jornada. A escolha do assento isolado não era caso de incômodo, tampouco pragmático: desceria somente no ponto final, logo, não correria o risco de ficar presa e ter que pedir licença a pernas espaçosas que lhe trancassem a passagem. Afinal, era uma mocinha mirrada e quase todos constituíam um obstáculo desafiador.
Há alguns anos frequentava a mesma linha, de manhãzinha, subindo na primeira parada em frente à universidade, sendo uma das primeiras a ver os lugares todos vagos, e observar, com certa culpa, o carro atulhar-se, ponto a ponto, até expelir dezenas de destinos ao terminal, quarenta minutos depois. Naturalmente, gostava das janelas, ou, como batizava secretamente, "microscópio de gente". Gostava de como os passantes da calçada inflavam o tórax e ensaiavam andares de passarela quando o carro parava em estações; eles sabiam que tinham uma plateia itinerante. Além, recostar a cabeça e sentir o formigamento do vidro quando os pneus amaciavam o asfalto irregular era como uma massagem gratuita.
A princípio, não se importava em escolher os bancos duplos e ficar longe do seu instrumento vítreo de examinar as vidinhas lá fora. Sentia certa euforia quando o ônibus fazia uma de suas paragens, e rostos, alguns inéditos, outros regulares, emergiam na escadinha ao lado do motorista. Gostava de investigar um a um e decifrar-lhes os motivos enquanto trocavam dinheiro com o cobrador; tentava descobrir qual escolheria o assento ao seu lado. Porém, assim que a máquina arrancava, e a catraca cessava a sonora giratória, fixava-se para fora da janela, com olhos voltados às lâminas, mas a mente alerta ao interior, como a aumentar o suspense. O assento permanecia vazio, entretanto, até que todas as filas duplas com suas respectivas janelas fossem ocupadas. Então, os corredores eram escolhidos a contragosto. Finalmente, sempre olhando para fora, sentia a presença, o impacto, mesmo a olência, a leve lufada de alguém que se apressava a centímetros do seu ombro; muitas vezes encostavam nela, mas não se importava, pensando: quão curiosas são as oportunidades em que as pessoas se tocam!
Em locais repletos, onde a falta de espaço impele os convivas a forçadas aproximações, sentir na perna ou no braço o calor de outro ser humano é inteiramente aceitável; bem como o é, por ordem de etiqueta, encostar a bochecha em outra bochecha, enlaçar a palma em outra palma em cumprimentos cotidianos; mas quantas vezes a necessidade do toque era um desejo condenado fora das respectivas convenções!
A mudança de comportamento fora medida recente. Revezava as cadeiras unitárias desde que notou o cuidadoso escrutínio dos passageiros, à procura de assentos isolados e, quando não havia opção, a esforçada indiferença que exibiam aos seus companheiros de viagem, rapidamente sacando seus telefones, não raro acoplados a fios que lhes tampavam a audição, assim, portanto, vedando o espírito.
Em mais de três anos, sequer uma vez alguém iniciara uma conversa com ela, nem ela o fizera; temia que fosse mal interpretada ou, pior, receava apresentar-se como estorvo. Restava-lhe fantasiar ocasiões diversas em sua mente, onde um interlocutor tomava a figura de um inteligente rapaz, uma curiosa criança acompanhada de um progenitor negligente, um sábio idoso farto de causos de juventude, todos lhe dando atenção. Inúmeras vezes estas embalagens rompiam, de fato, da frente do coletivo, mas, ao atravessarem desdenhosos por ela, provavam-se destituídos de conteúdo.
Ao observar um casal de amigos, naquele dia, uma onda nostálgica lhe reavivou a memória. A menina apontava aleatoriamente para a rua e o amigo, respectivamente, fazia um comentário que engatilhava gargalhadas. Em tempo de ginásio, ela colecionara amizades como aquela: rapaz e moça, ambos em sincrônico compartilhamento de gestos, porém pechosa autenticidade de sentimentos; risadas espalhafatosas e provocações brincalhonas escondiam o subjacente anseio. A ardente necessidade de manter um ao outro próximo era disfarçada diariamente, através de elogios esporádicos e contatos intermitentes, cada um carregado de invisível declaração.
Quando um senhor de bengala subiu pela porta do meio, curvado como se inspecionasse o chão, o menino comprimiu os beiços e as pálpebras, emulando uma caricatura que disparou nova sessão de risadas da menina. Ela juntou-se a ele na imitação, e ambos seguiram amortecendo risinhos enquanto um homem de calças sujas de tinta dava seu lugar para o idoso cidadão. Fizeram nova vítima ao repararem uma obesa mulher com sacolas nas duas mãos sofrendo para não entalar na catraca estreitíssima. Sentiu inevitável pena.
Abandonou o casal a suas abafadas pilhérias e repousou a atenção no jovem cobrador de cabelos arrepiados. Ele dava instruções para um menino de compleição confusa, que vinha logo atrás da senhora obesa. Notou prontamente que o rapaz era formoso, e sua atabalhoada essência conferia-lhe charme a mais. Admirou-o mormente quando este voluntariou-se para segurar as sacolas enquanto a pesada passageira fazia um verdadeiro contorcionismo para galgar as grades de liberação.
Não havia mais assentos para eles, portanto, o rapaz teve de parar no corredor, próximo a ela. Instintivamente, ela se recolheu quando a brisa de seu movimento deslizou sobre seus antebraços. Ainda sentiu um breve perfume de adolescência. Novamente, traindo aos recém-adotados preceitos de ermitã, desejou que o moço lhe puxasse conversa. Mas o ônibus estava demais cheio, e qualquer diálogo seria ouvido por meia dúzia de almas, afora o constante ronco do motor e os ruídos dos freios desgastados que lhes forçariam erguer a voz.
Admoestou-se por mergulhar em hipóteses quiméricas, voltando a mirar os amigos ridentes. Estavam em raro momento de paz, cada qual com a cabeça baixa, carregando uma fleuma incompatível, certamente transviados por seus aparelhos móveis. Quando o ônibus desacelerou, a menina puxou o cadarço do capuz do amigo e ambos se puseram em movimento para descer. Aos tropeços e encontrões, alcançaram a porta central, por onde havia adentrado o velho de bengala.
Foi assim que o rapaz confuso e formoso a tocou. Quando o casal se espremeu para cair na porta, ele teve de dar um passo à frente. Enquanto o fazia, olhava para trás para se certificar de que havia deixado espaço suficiente para os barulhentos passantes. Ao som das gargalhadas derradeiras dos dois, ela sentiu a pele morna das costas da mão do menino contra sua bochecha. Contudo efêmero, o toque era doce e terno, malgrado a ausência de intenção.
Ele sequer se deu conta. Ela se arrepiou e tremeu. Logo o contato se desfez e o ônibus retomou sua circular empreitada. Na mesma parada em que os amigos desceram, subiram outros tantos viajantes, e logo o rapaz teve de se apressar para o fundo do ônibus para dar lugar aos que chegavam. Quão curiosas são as oportunidades em que as pessoas se tocam!