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domingo, 16 de setembro de 2012

Tradução livre.

Traduzir um texto em prosa é difícil o suficiente.
Mas poemas devem ser traduzidos, para atingir outras culturas. Seria injusto não fazê-lo.
É possível que parte, talvez grande parte, da beleza e do sentido se perca. Mas é um risco que talvez tenhamos que correr.

Esse poema é do americano Robert Frost, conhecido por seus versos simples mas sonoros, e chama-se A Brook in the City.

Esta é a minha tradução.


Um Riacho na Cidade

A fazenda persiste, porém avessa a se enquadrar
À nova rua da cidade que tem que trajar
Mais um número. Mas e quanto ao arroio
Que aninhou a casa, o seu braço como apoio?
Indago como alguém que conheceu o regato,
Sua força e impulso, tendo um dedo mergulhado
E feito saltar minha junta, tendo jogado
Uma flor para testar sua correnteza, por onde tenha passado.
O pasto poderia ser cimentado
Impedido de crescer cidade abaixo, pavimentado;
As macieiras atiradas às lareiras, galho a galho.
É a mesma coisa alimentar um rio com o orvalho?
Como dispor de uma força imortal
Não mais querida? Estancada ao manancial
Em camadas de cimento derramadas? O riacho jogado
Fundo num esgoto cavernoso, enterrado
Em uma escuridão fétida, para ainda viver e correr -
E tudo por nada que havia de merecer
Exceto, talvez, esquecer de ir temido.
Ninguém saberia senão mapas antigos
Que tal regato corria água. Mas me pergunto
Se por ser mantido sempre fundo
As memórias não tenham ascendido de modo a manter
Esta cidade recém-construída, a trabalhar e adormecer.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Fura-bolos


Seu alicate era quase uma extensão etérea do próprio braço. Um traço angelical que se somou quando primeiro viu seu pai cortando fios de cobre na garagem de casa. Era um pirralho, mas a vontade de destrinchar os objetos mais fortes e vê-los ceder ao instrumento, com a ajuda do braço humano, caminhou com ele pelo resto da adolescência. E quando passou o início da vida adulta e perdeu muitos cabelos, já tinha fabricado seu próprio arsenal de ferramentas de corte. Iam desde tesouras até morsas. Mas nada se comparava ao alicate. Fizera-o com vinte e dois centímetros de comprimento, cada barra da base feita de ferro coberto por uma borracha vermelha tinha quatro centímetros de diâmetros, havia saliências antiderrapantes, para quando o suor da excitação inundasse as palmas das mãos, isso não interferisse na ação de esmiudar tudo que quisesse. A diferença estava na área do corte, que era reforçada e feita de aço temperado, e o corte seria rápido como uma guilhotina, preciso como um bisturi. O eixo era preso por um bravo parafuso dentado de titânio, e sua maleabilidade era impressionante. Já havia feito tudo que pudesse ali, e enquanto estudava novas técnicas na revista cirúrgica e materiais nos catálogos de construção, malhava infatigavelmente os braços, ombros e tórax. Afinal dali sairia toda a força. Sua silhueta era descomunal, tendo crescido a ponto de quase atingir dois metros de altura, e pesar cento e quinze quilos. Treinava a mira e a agilidade em pedaços de carne que recebia do açougue. Montara sua própria área na garagem, onde interpretava uma sala de cinema, o banco de um banco, a poltrona de um ônibus, e deitava ali uma pata suína descongelada. Sentava. Mantinha-se implacável, parado, então dava o bote, o alicate saindo debaixo da casaca, os dentes de metal como as pinças de um alacrau, ganhando o tecido em milissegundos. Mas havia também os testes de aproximação sorrateira, onde pendurava a carne na cabeceira de um encosto e passeava pelo ambiente até chegar tão perto que não era necessário bote algum. Apenas tirava o alicate da casaca, posicionava-o, e o corte estava feito. Haveria sempre de decepar completamente o membro, ou voltaria para casa desolado, se auto-flagelando com beliscões em baixo da roupa que chegavam a arrancar filetes de sangue. Suas feridas estavam todas saradas, dada à sua destreza atual. Quando chegava a hora de atrever-se fora da placidez de sua garagem, vestia os coturnos número quarenta e oito do tempo de soldado, a calça preta e impermeável de motoqueiro, uma camisa qualquer e a casaca de couro preto. O capacete lhe servia de disfarce, o visor com adesivo fumê tinha duas órbitas estrategicamente recortadas para a melhor visão do que estava fazendo. Desta forma ele via tudo, e quem quer que fosse atacado notaria no máximo a cor de seus olhos, e teriam de dotar de olhos de coruja. Os jornais o chamavam de Fura-bolos, dada sua preferência pelo dedo indicador. Gostaria, sim, que o chamassem Mata-casais, ao seu desejo de decepar os dedos anulares, mas era apenas muito difícil acertá-los, junto aos dedos médios. Conseguira a proeza, porém, quando um rapaz de anatomia longa estendera o braço pela poltrona da namorada no cinema, e o dedo que carregava o anel ficara na posição perfeita para o bote. Clac! Sem mais ‘aceite este anel como símbolo do meu compromisso e de meu amor’. Divertia-se particularmente com a retardada reação de dor de suas vítimas. Recolhiam o braço como um relâmpago, como se alguém os tivesse esbarrado um pouco mais forte, a expressão de interrogação nas sobrancelhas, até que sentiam o líquido quente, a ardência, e se davam conta de que faltava-lhes um dedo. Era tudo que se permitia regozijar, dando procedência ao sistema de fuga. Trinta e quatro dedos era sua conta, e agora tinha outros planos em mente. Os dedos estavam enjoativos, portanto esta noite se preparava para cortar algum lóbulo de orelha, ou quem sabe apenas um naco de carne de peles despidas.

sábado, 16 de junho de 2012

O Homem Que Esqueceu Ray Bradbury

Um conto traduzido de Neil Gaiman.

O título é ruim, na minha opinião, ele estreita de modo enganoso a um único tema o que é magnificamente um assunto universal: a pequenez da nossa memória, e como ela se apaga, vão-se os anos...

O Homem Que Esqueceu Ray Bradbury não é só um tributo, é um conto maravilhoso.

E aqui vai:


"Eu estou esquecendo coisas; o que me assusta.
Estou perdendo palavras, embora não esteja perdendo conceitos. Eu espero que não esteja perdendo conceitos. Se estou perdendo conceitos, não estou ciente disso. Se estou perdendo conceitos, como saberia?
O que é engraçado, porque minha memória sempre foi tão boa, tudo estava lá.
Certas vezes minha memória era tão boa que eu chegava a pensar que podia lembrar de coisas que não conhecia ainda.
Lembrando do futuro...
Acho que não existe uma palavra para isso, existe? Lembrar de coisas que não aconteceram ainda. Eu não tenho aquela sensação de procurar na minha cabeça por uma palavra que não está lá, como se alguém tivesse vindo e pegado ela durante a noite.
Quando eu era um jovem garoto eu vivia numa grande casa compartilhada. Era um estudante na época. Nós tínhamos nossas próprias gavetas na cozinha, ordenadamente marcadas com nossos nomes, e nossas próprias gavetas na geladeira, onde deixávamos nossos próprios ovos, queijo, iogurte, leite. Eu era sempre meticuloso em usar somente minhas provisões. Os outros não eram tão... aí. Perdi uma palavra. Alguma que signifique "assíduo seguidor das regras". As outras pessoas na casa... não eram. Eu ia até a geladeira e meus ovos estavam extintos.
Estou pensando em um céu repleto de espaçonaves, tantas delas que parecem uma praga de gafanhotos, o prata contrastando com o lilás luminoso da noite.
Coisas desapareciam do meu quarto naquele tempo, também. Botas. Lembro de minhas botas indo. Ou "sendo levadas", eu diria, já que eu nunca as flagrava no ato de ir embora. Botas não "se vão", simplesmente. Alguém "se vai" com elas. Assim como meu grande dicionário. Mesma casa, mesmo período no tempo.
Fui até minha estante perto do meu rosto (tudo ficava do lado da minha cama - era o meu quarto, mas não era muito maior que um guarda-louças com uma cama dentro). Eu fui até a estante e o dicionário havia sumido, apenas um buraco do tamanho de um dicionário ali, para mostrar onde ele não estava.
Todas as palavras e o livro onde elas vinham, desaparecidos. Durante o mês seguinte eles pegaram ainda meu rádio, uma lata de espuma de barbear, um bloco de notas, e uma caixa de lápis. E o meu iogurte. E, eu descobri no meio de um blecaute, minhas velas.
Agora estou pensando em um garoto com tênis novos, que acredita que pode correr para sempre. Não, isso não é dá-los para mim. Uma cidade seca onde chovia para sempre. Uma estrada através do deserto, onde as pessoas boas veem uma miragem. Um dinossauro que é produtor de cinema. A miragem era a Câmara dos Prazeres de Kublai Khan.
Não...
Às vezes quando as palavras se vão eu consigo achá-las perambulando-as por outra direção. Digamos que estou procurando uma palavra - estou discutindo sobre os habitantes do planeta Marte, digamos, e me dou conta de que a palavra para eles se foi. Posso também perceber que a palavra desaparecida aparece numa sentença ou num título. As Crônicas __________. Meu __________ Favorito.
Se isso não captura ela, eu circulo a ideia. Homem verde e pequeno, eu penso, ou alto, de pele escura, dócil: Escuros eles eram e de olhos dourados... e de repente a palavra Marcianos está esperando por mim, como um amigo ou uma amante ao final de um longo dia.
Eu saí daquela casa quando meu rádio sumiu. Era muito desgastante, a lenta desaparição das coisas que pensava serem seguramente minhas, item por item, coisa por coisa, objeto por objeto, palavra por palavra.
Quando eu tinha doze anos um homem velho me contou uma história que nunca mais esqueci. Um pobre homem viu-se só numa floresta no cair da noite, e ele não tinha consigo nenhum livro de orações para rezar suas orações noturnas. Então ele disse, "Deus que sabe de todas as coisas, não tenho nenhum livro de orações e não sei nenhuma de cabeça. Mas você conhece todas as orações. Você é Deus. Então vou fazer o seguinte. Vou dizer todo o alfabeto, e vou deixar você colocar as letras em ordem."
Há coisas que se perderam da minha mente, e isso me assusta. Ícaro! Não é como se tivesse esquecido todos os nomes. Eu lembro de Ícaro. Ele voou perto demais do sol. Nas histórias, porém, valeu a pena. Sempre vale a pena tentar, mesmo se você falhar, mesmo que caia como um meteoro para sempre. Antes ter flamejado na escuridão, ter inspirado outros, ter vivido, do que ter sentado no escuro, amaldiçoando as pessoas que emprestaram, mas não devolveram, suas velas.
Eu já perdi pessoas, no entanto.
É estranho quando acontece. Eu não as perco, verdadeiramente. Não do mesmo jeito que alguém perde os pais, nem mesmo quando criança, quando você pensa que está segurando a mão de sua mãe numa multidão e então olha pra cima, e não é sua mãe... ou mais tarde, quando você tem que achar palavras para descrevê-los num funeral ou memorial, ou quando está espalhando as cinzas num jardim de flores ou no mar.
Eu às vezes penso que gostaria de ter minhas cinzas espalhadas numa biblioteca. Mas então os bibliotecários teriam de chegar mais cedo na manhã seguinte para varrê-las de novo, antes que as pessoas chegassem.
Eu gostaria que minhas cinzas fossem jogadas numa biblioteca ou, possivelmente, num parque de diversões, onde você brinca no... na... a...
Perdi a palavra. Carrossel? Montanha-russa? A coisa que você brinca, e volta a ser criança. A Roda Gigante. Sim. Há outra festa que vem para a cidade, também, trazendo o mal. "Ao estalar dos meus dedos...".
Shakespeare.
Eu lembro de Shakespeare, e lembro do nome dele, e quem ele foi e o que ele escreveu. Ele está a salvo, por enquanto. Talvez existam pessoas que esquecem de Shakespeare. Eles teriam que falar sobre "o homem que escreveu 'ser ou não ser'" - não o filme, com o Jack Benny, cujo nome real era Benjamin Kubelsky, que foi criado em Waukegan, Illinois, uma hora mais ou menos para fora de Chicago. Waukegan, Illinois, foi posteriormente imortalizada como A Cidade Verde, Illinois, numa série de histórias e livros por um autor americano que deixou Waukegan e foi viver em Los Angeles. Refiro-me é claro, ao homem em que estou pensando. Posso vê-lo na minha cabeça quando fecho os olhos.
Eu costumava olhar as fotografias dele, na parte de trás dos seus livros. Ele parecia meigo e parecia sábio, e parecia bondoso.
Ele escreveu uma história sobre Poe, para impedir que Poe fosse esquecido, sobre um futuro onde queimariam livros e os esqueceriam, e na história nós estamos em Marte, embora possamos estar também em Waukegan ou Los Angeles, como críticos, como aqueles que oprimem ou esquecem os livros, como aqueles que pegariam as palavras, todas as palavras, dicionários e rádios cheios de palavras, como aqueles que entram numa casa e são assassinados, um por um: por um orangotango; por um Poço e um Pêndulo; pelo amor de Deus, Montressor...
Poe. Eu conheço Poe. E Montressor. E Benjamin Kubelsky e sua mulher, Sadie
Marks, que não tinha relação nenhuma com os irmãos Marx e que atuou como Mary
Livingston. Todos estes nomes em minha mente.
Eu tinha doze anos.
Eu tinha lido os livros, tinha visto o filme, e o momento da queima do papel foi o memento onde eu soube que teria de lembrar daquilo. Porque as pessoas teriam de lembrar de livros, se outras pessoas os queimassem ou esquecessem.
Nós vamos compromissá-los com a memória. Nós nos tornaremos eles. Nos tornaremos autores. Nos tornaremos o livro deles.
Peço desculpas. Eu perdi algo ali. Como um caminho em que estava seguindo e terminou sem saída, e agora estou sozinho e perdido na floresta, e estou aqui e eu não sei mais onde aqui é.
Você precisa aprender uma peça de Shakespeare; Vou lembrar de você como Titus
Andronicus. Ou você, amigo, você poderia aprender um livro de Agatha Christie;
Você será O Assassinato no Expresso do Oriente. Outro alguém pode aprender os poemas de John Wilmot, Conde de Rochester, e você, quem quer quer você seja, lendo isso, você pode aprender um livro de Dickens, e quando eu quiser saber o que aconteceu com Barnaby Rudge, eu irei até você. Você pode me contar.
E as pessoas que queimassem os livros, as pessoas que pegassem os livros das prateleiras, os incendiários e os ignorantes, os com medo de palavras e fábulas e sonhos e Halloween e de pessoas que tenham tatuado seus corpos com histórias e Cara! Você Consegue Cultivar Cogumelos No Seu Porão! enquanto suas palavras, que são pessoas, que são dias, que são minha vida, enquanto suas palavras sobreviverem, então você viveu e você teve importância e você mudou o mundo e eu não consigo lembrar seu nome...
Eu aprendi seus livros. Gravei-os em minha mente. No caso de os incendiários virem para a cidade.
Mas quem você é se foi. Eu espero que volte para mim. Assim como eu esperei pelo meu dicionário ou pelo meu rádio, ou pelas minhas botas, e com um resultado medíocre.
Tudo que tenho agora é o espaço em minha mente onde você costumava ficar.
E não estou tão certo mesmo quanto a isso.
Eu estava conversando com um amigo. E eu disse, "Essas histórias lhe são familiares?" contei a ele todas as palavras que conhecia, aquelas sobre monstros voltando para casa, para a casa com a criança humana dentro, aquelas sobre o vendedor relâmpago e o estardalhaço perverso que o seguiu, e os
Marcianos e suas cidades de vidro estilhaçadas e seus canais perfeitos. Eu disse a ele todas as palavras, e ele disse que nunca as havia escutado. Que elas não existiam.
E eu me preocupo.
Receio ter mantido elas vivas. Como as pessoas na neve no final da história, andando para frente e para trás, lembrando, repetindo as palavras dos contos, tornando-os reais.
Eu acho que é culpa de Deus.
Quero dizer, não pode se esperar que Ele lembre de tudo, Deus não pode.
Camarada ocupado. Então talvez ele delegue coisas, às vezes, diga apenas,
"Você! Eu quero que você lembre das datas da Guerra dos Cem Anos. E você! você lembra do ocapi, que é uma mistura de girafa com antílope. Você, lembre-se de Jack Benny que era Benjamin Kubelsky de Waukegan, Illinois." E então, quando você esquece das coisas que Deus o imcubiu de lembrar, BAM! Adeus ocapi.
Apenas um buraco em forma de ocapi no mundo. Adeus Jack Benny. Adeus Waukegan.
Apenas um buraco em sua mente onde costumava estar uma pessoa ou um conceito.
Eu não sei.
Eu não sei onde procurar. Terei eu perdido um autor, assim como certa vez perdi um dicionário? Ou pior: Teria Deus me dado uma simples tarefa, e agora eu a descumpri, e por eu ter esquecido está banido das estantes, desaparecido das obras de referência, e agora só existe em sonhos...
Meus sonhos. Eu não conheço os seus sonhos. Talvez você não sonhe com uma savana que é apenas um papel de parede mas que devora duas crianças. Talvez você não saiba que Marte é o Céu, aonde nossos amados finados vão para nos esperar, e depois nos consumir durante a noite. Você não sonha com um homem que é detido pelo crime de ser um andarilho.
Eu sonho essas coisas.
Se ele existiu, então eu o perdi. Perdi seu nome. Perdi os títulos de seus livros, um por um por um. Perdi as histórias.
E tenho medo de que eu esteja ficando louco, porque não posso estar apenas envelhecendo.
Se eu falhei nessa simples tarefa, oh Deus, então pelo menos me deixe fazer isso, que você entregue as histórias de volta para o mundo.
Porque, talvez, se isso funcionar, eles vão lembrar dele. Todos eles vão lembrar dele. Seu nome irá mais uma vez tornar-se sinônimo de pequenas cidades americanas no Halloween, quando as folhas deslizarem pelas calçadas como pássaros assustados, ou sinônimo de Marte, ou de amor. E o meu nome será esquecido.
Estou disposto a pagar esse preço, para que o espaço vazio na estante de livros da minha memória possa ser preenchido novamente, antes que eu vá.
Querido Deus, escute minha prece: A... B... C... D... E... F... G..."

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Entrevistador: Neil Gaiman. Entrevistado: Stephen King.

Agora eu respeito mais ainda o trabalho dos tradutores.
Eu traduzi apenas algumas páginas, eles traduzem trezentas, quatrocentas - ou, se você lê Stephen King, novecentas.


É algo gostoso de se fazer, e afeta os mais recônditos cantos do cérebro. Às vezes dói, mas a conclusão é reconfortante.


Não tenho certeza quanto a direitos autorais e, na pior das hipóteses, o Sunday Times da Inglaterra pode vir clamá-los. Eu ficaria lisonjeado.


A entrevista em inglês está no blog do Neil, aqui: http://journal.neilgaiman.com/2012/04/popular-writers-stephen-king-interview.html

Aos bois, os nomes:



Escritores Populares: Uma entrevista com Stephen King

Eu entrevistei Stephen King para a revista britânica Sunday Times. A entrevista saiu algumas semanas atrás. O Times mantém seu site para pagantes, então pensei em postar a versão original da entrevista aqui. (Esta é a cópia crua, e de alguma forma é mais longa do que a publicada.)
Eu não faço muito jornalismo mais, e isso foi mais uma desculpa para dirigir pela Flórida lá em fevereiro e passar alguns dias com pessoas legais e que não vejo muito.
Espero que gostem.



O Sunday Times me pediu para escrever algo pequeno e pessoal sobre eu e o King. Eu escrevi isso:

“Eu acho que a coisa mais importante que aprendi com Stephen King, quando adolescente, foi lendo o livro de ensaios sobre horror e sobre escrever, A Dança Macabra. Ali ele ressalta que se você escrever apenas uma página por dia, só 300 palavras, no final do ano você tem um romance. Foi imensamente motivador – de repente, algo enorme e impossível se tornou estranhamente fácil. Já adulto, foi como eu escrevi livros que eu não tinha tempo para escrever, como o meu infantil Coraline .”



Ao encontrar Stephen King desta vez, a cosia que mais me surpreendeu foi o quão confortável ele é com o que faz. Toda aquela conversa de se aposentar da escrita, de parar, as sugestões de que talvez seja hora de parar antes que se torne repetitivo, parecia haver acabado. Ele gosta de escrever, gosta mais do que qualquer outra coisa que poderia estar fazendo, e não parece nem um pouco inclinado a parar. Exceto, talvez, com uma arma apontada.

A primeira vez que encontrei Stephen King foi em Boston, em 1992. Eu sentei na sua suíte de hotel, conheci sua esposa Tabitha, que é Tabby nas conversações, e seus então filhos adolescentes Joe e Owen, e falamos sobre escrever, e autores, sobre fãs e fama.

“Se eu começasse minha vida de novo,” ele disse. “Eu faria tudo igual. Mesmo as partes ruins. Mas eu não teria feito a promoção da American Express “Você Me Conhece?” Depois disso, todo mundo nos Estados Unidos sabia como eu era.”

Ele era alto e de cabelos negros, e Joe e Owen pareciam clones mais jovens do pai, recém-saídos da máquina de clones.

A outra vez que encontrei Stephen King, em 2002, ele me puxou para o palco para tocar kazoo (instrumento de sopro parecido com um cachimbo) com os Rock Bottom Remainders, um conjunto duvidoso de autores que conseguem tocar instrumentos e cantar e, no caso de Amy Tan, incorporar uma dominatriz enquanto canta “Estas Botas Foram Feitas Para Andar”, de Nancy Sinatra.

Mais tarde nós conversamos em um minúsculo banheiro nos fundos do teatro, o único lugar onde King poderia fumar um furtivo cigarro. Ele parecia frágil, então, e cinzento, recentemente recuperado de uma longa hospitalização por ter sido atropelado por um idiota numa van, e das infecções hospitalares que se seguiram. Ele resmungava da dor de descer as escadas. Fiquei preocupado com ele.

E agora, outra década, quando King sai do estacionamento em Sarasota Key para me cumprimentar, ele parece bem. Não está mais frágil. Está com 64 anos e aparenta mais jovem do que na década anterior.

A Casa de Stephen King em Bangor, Maine é gloriosa e gótica. Eu sei disso mesmo nunca ter estado nela. Já vi fotografias na internet. Parece o tipo de lugar que alguém como Stephen King merece viver e trabalhar. Há morcegos de ferro forjado e gárgulas nos portões.

A casa de Stephen King na Flórida, perto de Sarasota, uma extensão de terra no limite do mar, alinhada com grandes casas (“aquela ali foi de John Gotti,” eu aprendi enquanto passávamos por uma enorme e bem amuralhada construção branca. “Nós a chamamos de Mansão do Assassinato”), é feia. E não apenas carinhosamente feia. É um longo bloco de concreto e vidro, como uma caixa de sapatos gigante. Foi construída, explica Tabby, por um homem que construía shopping centers, e com material de um shopping center. É como a idéia de uma loja Apple para uma McMansion, e nada bonita. Mas uma vez dentro, as paredes de vidro tem uma vista perfeita sobre a areia e o mar, e há uma passagem metálica e azul gigantesca que se dissolve no nada e dá num canto do jardim, e dentro da casa há pinturas e esculturas, e, principalmente, o escritório de King. Tem duas escrivaninhas nele, com uma cadeira surrada e muito usada, de costas para a janela.

Essa é a escrivaninha que King senta todos os dias, e é onde ele escreve. Agora ele está escrevendo um livro chamado Joyland (Terra da Diversão), sobre um serial killer de Parques de Diversão. Abaixo da janela fica um espaço bem cercado de terra, com uma enorme tartaruga africana perambulando por ali, como uma monstruosa rocha ambulante.

Na primeira vez que conheci Stephen King, bem antes de vê-lo em carne e osso, foi na Estação East Croydon por volta de 1975. Eu tinha 14 anos. Peguei um livro com a capa inteira preta. Chamava A Hora do Vampiro (Salem`s Lot). Era o segundo livro dele; eu perdi o primeiro, um pequeno livro chamado Carrie, A Estranha (Carrie), sobre uma adolescente com poderes psíquicos. Fiquei acordado até tarde e acabei A Hora do Vampiro, adorando o retrato dickensiano de uma pequena cidade americana, destruída com a chegada de um vampiro. Não um vampiro bom, um vampiro decente. Dracula conhece Peyton Place. Depois disso eu comprei tudo que lançava de Stephen King. Alguns livros eram ótimos, outros não. Mas tudo bem, eu confiava nele.

Carrie, A Estranha foi o livro que King começou e abandonou, e o qual Tabby King tirou da cesta de lixo de papel, leu e encorajou-o a finalizar. Eles eram pobres, e King vendeu Carrie, e tudo mudou, e ele continuou a escrever.

Dirigindo ao sul para Flórida eu escutei, por mais de trinta horas, ao audiobook do romance de viagem no tempo de King, 22/11/63. É sobre um professor de Ensino Médio de Inglês (como também fora King, quando ele escreveu Carrie) que volta de 2011 para 1958, via um Buraco de Minhoca (termo físico) localizado num armazém de uma antiga lanchonete, com a missão de salvar John F. Kennedy de Lee Harvey Oswald.

O livro é, como sempre com King, o tipo de ficção que força você a se importar com que acontece, página após página. Tem elementos de horror, mas eles existem quase que como um tempero para algo que é em parte um romance histórico estreitamento pesquisado, em parte uma história de amor, e sempre uma reflexão sobre a natureza do tempo e do passado.

Dada à grandeza da carreira de King, é difícil descrever qualquer coisa que escreva como uma anomalia. Ele está no topo da ficção popular (e, ocasionalmente, não-ficção). Sua carreira (escritores não têm carreira, na maioria. Nós apenas escrevemos o próximo livro) é particularmente estigmatizada. Ele é um romancista popular, o que costumava significar, ou talvez continua sendo, a descrição de um autor de certo tipo de livro: um que recompensará sua leitura com prazer e trama, como John D. MacDonald (a quem King dá seu chapéu em 22/11/63). Mas não só um romancista popular: não importa o que escreva, parece que é sempre um escritor de horror. Eu pergunto se isso o frustra.

“Não. Não frustra. Eu tenho minha família, e eles estão todos bem. Temos dinheiro suficiente para comprar comida e ter coisas. Ontem, tivemos uma reunião da Fundação King (a instituição privada que King financia e que beneficia muitas causas). Minha cunhada Stephanie organiza tudo e nós todos sentamos e damos dinheiro para os outros. Isso é frustrante. Todo ano nós damos o mesmo dinheiro para pessoas diferentes... é como socar dinheiro num buraco. Isso é frustrante.

“Eu nunca pensei em mim como um escritor de horror. Isso é o que outras pessoas pensam. E eu nunca disse merda nenhuma sobre isso. Tabby veio do nada, eu vim do nada, nós ficávamos aterrorizados que eles viessem e tirassem isso da gente. Então se as pessoas quisessem dizer “Você é isso”, contanto que o livro vendesse, tudo bem. Eu pensei 'vou fechar a boca e escrever o que quiser escrever'. A primeira vez que aconteceu o que você está falando foi quando eu escrevi Quatro Estações. Eram histórias que eu tinha escrito como eu escrevo todas elas. Quis escrever uma história do tipo 'havia uma prisão', Um Sonho de Liberdade (Rita Hayworth and The Shawshank Redemption); e outra baseada na minha infância chamada O Outono da Inocência (The Body); e também há uma história de uma criança que acha um nazista, O Aprendiz (Apt Pupil). Enviei elas para Viking, meu publicador. Meu editor era John Williams – morto há muitos anos, excelente editor -, ele sempre levou o trabalho a nível morto. Nunca queria empolgar-se. Mandei para eles o Quatro Estações, e ele disse 'bem, primeiro de tudo, você chama de Estações, e só escreveu três. Então escrevi outro, O Método Respiratório (The Breathing Method), e o livro estava completo. Ganhei as melhores críticas da minha vida. E essa foi a primeira vez que as pessoas pensaram, Woah, isso não é exatamente de terror."

"Estava num supermercado, e uma mulher velha veio dobrando o corredor e, essa mulher – obviamente um dos tipos de mulher que fala o que quer que venha no cérebro. Ela disse 'Eu sei quem você é, você é o escritor de terror. Eu não leio nada que você escreve, mas respeito o seu direito de fazê-lo. Só gosto das coisas mais genuínas, como aquele Um Sonho de Liberdade."

“Eu disse 'Eu escrevi esse'. E ela disse 'Não, não escreveu'. E foi andando para longe.

Acontece, vezes e vezes. Aconteceu quando ele publicou Louca Obsessão (Misery), sua crônica de fanatismo tóxico. Aconteceu com Saco de Ossos (Bag of Bones), sua história gótica de fantasmas sobre um romancista, com inclinações para Rebecca, de Du Maurier; Aconteceu quando ele foi indicado para a Medalha Nacional do Livro para Contribuição às Letras Americanas.

Não estamos mais conversando na grande caixa de sapato de concreto. Estamos sentados perto da piscina numa casa menor que King comprou na mesma rua, como uma casa de visitantes para a família. Joe King, que escreve sob o pseudônimo Joe Hill, está hospedado lá. Continua parecido com o pai, mas não mais um clone versão adolescente, e agora tem uma carreira bem sucedida como escritor e quadrinista. Carrega seu Ipad para onde vai. Eu e Joe somos amigos.

Em Saco de Ossos, Stephen King tem um autor que pára de escrever livros, mas continua publicando os empilhados no estoque. Pergunto quanto tempo seus editores poderiam esconder sua morte.

Ele sorri. “Eu tive a ideia do escritor que tem livros, em Saco de Ossos, porque alguém me disse anos antes que todo ano Danielle Steel escrevia três livros e publicava dois, e eu sabia que Agatha Christie tinha deixado uns dois de lado, para por um fim na carreira. Quanto a agora, se eu morresse e todos mantivessem segredo, iria até mais ou menos 2013. Há um novo livro da série A Torre Negra, 'The Wind in the Keyhole'. Ele sairá em breve. E Dr. Sleep está pronto. Então se eu fosse atropelado por um táxi, como Margaret Mitchell, o que seria e não seria feito: Joyland não seria feito, mas Joe poderia finalizá-lo, facilmente. Seu estilo é quase indistinguível do meu. As ideias dele são melhores que as minhas. Estar perto de Joe é como ficar perto de um foguetinho, soltado fagulhas para todos os lados, todas ideias. Eu não quero desacelerar. Meu agente está enchendo o saco dos editores sobre o Dr. Sleep, a sequência de O Iluminado, mas eu segurei um pouco quando mostrei para eles o manuscrito, queria um tempo para respirar.”

Por que ele escreveria uma sequência para O Iluminado? Eu não disse a ele o quanto esse livro me assustou quando eu tinha 16 anos, nem o quanto eu amei e ao mesmo tempo fiquei desapontado com o filme do Kubrick.

“Eu fiz porque era algo irritante de se fazer. Dizer que você estava voltando para o livro que foi realmente popular e escrever uma sequência. As pessoas pensam nesse livro, elas leram quando crianças. Crianças leem ele e dizem que é assustador, e então, quando adultos, talvez leiam a sequência e pensem 'não é tão bom'. O desafio é: talvez seja possível ser tão bom, ou talvez seja diferente. Isso te dá algo para lutar contra. É um desafio.

“Eu quis escrever Dr. Sleep porque queria saber o que aconteceria com Danny Torrance quando crescesse. E eu sabia que ele seria um bêbado porque o pai dele fora um. Um dos buracos que me pareciam ter O Iluminado era que Jack Torrance fora um sóbrio temporário que nunca tentara um grupo de ajuda, como o AA. Pensei, okay, vou começar com Danny com 40 anos de idade. Ele vai ser uma daquelas pessoas que dizem 'eu nunca vou ser como meu pai, nunca serei abusivo como meu pai foi'. Então você acorda com 37 ou 38 anos e é um alcoólatra. Então pensei, que tipo de vida uma pessoa dessas tem? Ele terá vários empregos temporários, ele será enganado, e agora trabalha como zelador num hospício. Eu realmente o queria num hospício, porque ele tem aquele lado iluminado que pode ajudar as pessoas a atravessar quando morrerem. Eles o chamam de Dr. Sleep, e sabem quando o chamar quando o gato entra no quarto e senta na cama. Foi uma escrita sobre o cara que dirige o ônibus, e come no McDonalds, ou, numa noite especial, num Red Lobster. Não estamos falando de alguém que vai a restaurantes chiques.”

Stephen e Tabitha se conheceram entre as prateleiras da biblioteca da Universidade do Maine, em 1967, e se casaram em 1971. Ele não conseguiu uma vaga de professor quando se graduou, então começou a trabalhar numa lavanderia industrial, ou como frentista, até como zelador, enquanto alimentava sua lenta ascensão com contos ocasionais, na maioria terrores, vendidos a revistas masculinas com nomes como Cavaleiro. Eram extremamente pobres. Moravam num trailer, e King improvisou uma mesinha entre a lava-roupas e a secadora. Tudo mudou em 1974, com a venda da tiragem de Carrie, A Estranha, por 200 mil dólares. Pergunto quanto tempo faz que King não se preocupa mais com dinheiro.

Por um momento, ele pensa. “1985. Por um bom tempo Tabby entendeu que nós não tínhamos que nos incomodar com essas coisas. Eu não. Estava convencido de que eles levariam tudo embora, e teria de morar com três crianças numa casa alugada de novo, que tudo era muito bom para ser verdade. Por volta de 1985 eu comecei a relaxar e pensar 'isso é bom, vai ficar tudo bem'.

“Mesmo agora, isso (ele gesticula para a piscina, a casa de visitas, o Florida Key e todas as mansões), isso é tudo muito estranho para mim, mesmo que seja apenas três meses do ano. Onde nós moramos no Maine, é um dos condados mais pobres. Muitas das pessoas que andamos e saímos cortam madeira para sobreviver, carregam lixo, esse tipo de coisa. Não digo que temos isso em comum, mas sou apenas uma pessoa comum, e tenho esse único talento que uso.”

“Nada me chateia mais do que ir a um restaurante chique em Nova York, onde você tem que sentar por três merdas de horas. Você sabe, e as pessoas tomarão drinks antes, vinho depois, mais três pratos, depois querem café, e alguém vai perguntar de alguma merda de imprensa francesa, e todo o resto é bosta. Para mim, a ideia do que é bom é dirigir para cá e ir numa casa de Waffle, pedir alguns ovos e um waffle. Quando vejo a primeira casa de Waffle, sei que estou indo para o Sul. Isso é bom.”

“Me pagam quantias absurdas de dinheiro para fazer coisas que faria de graça.”

O pai de Stephen foi comprar cigarros quando King tinha quatro anos, e nunca mais voltou, deixando-o às custas da mãe. Steve e Tabby têm três filhos: Naomi, uma ministra de unificação com um ministério digital; Joe e Owen, ambos escritores. Joe está finalizando seu terceiro romance. O primeiro de Owen sairá em 2013.

Pergunto sobre distância e mudanças. Como é escrever personagens que são trabalhadores braçais em 2012?

“É definitivamente mais difícil. Quando escrevi Carrie e A Hora do Vampiro, estava um passo além do trabalho manual. Mas é verdade, também – Joe descobrirá -, que quando se tem crianças pequenas, é mais fácil de escrever sobre eles, porque você observa-os e os têm em sua vida o tempo todo.

“Mas eles crescem. É mais difícil, para mim, escrever sobre uma menininha de doze anos em Dr. Sleep, do que quando tive de falar sobre um menino de cinco anos, o Danny Torrance, porque Joe era um modelo para Danny. Não quero dizer que Joe é iluminado, mas sabia como ele era, como ele brincava, o que queria fazer e essa coisa toda. Mas veja, o principal é: se você conseguiu imaginar todas as coisas fabulosas de Deuses Americanos, se eu posso imaginar portas mágicas e tudo o mais, então certamente eu posso forçar minha imaginação a trabalhar e dizer: veja, isso é como imagino ser trabalhar dez horas por dia num emprego atual.”

Estamos fazendo a coisa de escritor agora: falando sobre o ofício, sobre como e o que fazemos, inventando coisas para viver, e como vocação. Seu próximo livro, The Wind in the Keyhole, é um capítulo da série Torre Negra, parte de uma sequência que King traçou e começou quando era ainda um adolescente. A sequência levou anos para ficar pronta, e só terminou pela pressão dos assistentes, que estavam cansados de responder cartas de fãs perguntando quando a história seria concluída.

Agora ele terminou a história e está tentando decidir o quanto ele pode reescrever, e se ele vê a sequência como um longo romance. Será que pode fazer um segundo projeto? Ele deseja. Atualmente, Stephen King é um personagem no quinto ou sexto livro da Torre Negra, e Stephen King, o autor não-ficcional, está se perguntando se deve ou não eliminá-lo.

Conto a ele sobre a peculiaridade na minha pesquisa que estou trabalhando, onde tudo que preciso, ficcionalmente, estava esperando por mim quando eu fui procurar. Ele acena, concordando.

“Absolutamente – você estica o braço e lá está. A vez que isso aconteceu mais claramente foi quando Ralph, meu agente então, me disse 'Isso é um pouco doido, mas você tem alguma ideia para algo como uma série de romances, como Dickens costumava fazer?', e eu tinha uma história que estava brigando para respirar. Era À Espera de Um Milagre (The Green Mile). E sabia que se fosse fazer aquilo, teria de me dedicar. Comecei a escrever e fiquei confortavelmente à frente do cronograma. Porque...” ele hesita, tenta explicar de um modo que não pareça tolo, “Toda vez em que precisei de algo, esse algo estava bem ali para eu pegar. Quando John Coffey vai para prisão – ele seria executado por assassinar as duas meninas. Eu sabia que ele não era culpado, mas não sabia que o verdadeiro assassino estaria lá, nem nada de como havia acontecido, mas quando escrevi, estava tudo ali para mim. Você apenas pega. Tudo se encaixa como se já existisse antes.

“Nunca penso nas histórias como coisas inventadas; Penso nelas como coisas achadas. Como se as puxasse para fora do solo, e você as colhesse. Alguém me disse certa vez que isso era eu subestimando minha criatividade. Pode ou não pode ser verdade. Mesmo assim, na história que estou trabalhando, eu tenho alguns problemas não resolvidos. Isso não me tira o sono. Sinto que quando chegar a hora, vai estar lá...”

King escreve todo dia. Se não o fizesse não seria feliz. Se ele escreve, o mundo é um bom lugar. Então ele escreve. É simples assim. “Eu sento por volta de oito e quinze da manhã e trabalho até mais ou menos quinze para o meio dia, e nesse período de tempo, tudo é real. E de repente tudo some. Acho que provavelmente escrevo entre 1200 e 1500 palavras por dia. São seis páginas.”

Começo a contar a King minha teoria, de que quando as pessoas num futuro distante quiserem ter uma ideia de como as coisas eram entre 1973 e hoje, eles vão olhar para Stephen King. Ele é um mestre em refletir o mundo que ele vê, e gravá-lo nas páginas. A ascensão e queda do VHS, a chegada do Google e do smartphone. Está tudo ali, atrás dos monstros e da noite, tornando-os mais reais.

King é sanguinário. “Você não sabe se pode dizer o que vai ou não durar. Há um ditado de Kurt Vonnegut sobre John D. MacDonald que diz “Daqui a 200 anos, quando as pessoas quiserem saber como foi no século XX, eles vão recorrer a John D. MacDonald”, mas não tenho certeza se isso está certo – parece que ele está quase esquecido. Mas eu tento reler um livro dele todas vez que viajo para cá.

Autores preenchem os vazios de uma conversa com Stephen King. E, eu percebi, todos eles são, ou foram, autores populares, pessoas cujo trabalho foi lido, e lido com diversão, por milhões.

“Sabe o que é bizarro? Eu fiz a Feira do Livro de Savannah semana passada... Está acontecendo comigo mais e mais. Eu saí e fui aplaudido de pé por um monte de gente, e é algo tenebroso... ou você se tornou um ícone cultural, ou eles estão aplaudindo o fato de você não estar morto ainda.”

Digo a ele sobre a primeira vez que vi aplausos de pé nos EUA. Era para Julie Andrews em Minneapolis, numa feira. Não era muito boa, mas ela ganhou os aplausos por ser Julie Andrews.

“Isso é muito perigoso, no entanto, para nós. Quero que as pessoas gostem do trabalho, não de mim.”

E os prêmios que ganhou na vida?

“Deixa eles felizes de dá-los para mim. E eles ficam nas prateleiras. Mas as pessoas não sabem disso.”

Então Tabby King vem para cima para nos dizer que é hora do jantar, e, ela acrescenta, que lá na casa grande, a Tartaruga Gigante Africana foi pega tentando estuprar uma rocha.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Conversa de Velho

Não me importa o que me falaram, filho, vou lhe contar o meu conselho dos meus oitenta anos.

A sua vida será uma mulher.
Nada de trabalho, carreira, nem de planos. Tudo isso vai embora no momento em que você se apaixona. Para ser sincero, você vai gazear o trabalho, vai repensar a carreira e simplesmente varrer seus planos quando ela falar que te ama. Vou lhe dizer, o poder dessa frase dita por uma voz feminina é venenoso. É uma informação amedrontadora, mas é verdade. Aí você está, achando que tem controle sobre tudo; e então os olhos dela se tornam o papel de parede dos seus olhos. Você sonhou em ser astronauta certa vez, mas serviria mesas num Café para o resto da vida, apenas para não estar longe, imagine, ir para a Lua enquanto ela fica na Terra!
Em certa época, as pessoas conseguirão fazer você sentir dúvida quanto o que irá fazer, ou como será viver... Palavras que conseguem destruir uma profissão. Mas ninguém será capaz de fazê-lo desistir de certa mulher. Nem a fome e a pobreza. Seus medos então serão coragens para não sucumbir ao único pavor: a perda.

Mas não quero que cometa erros, como igualar o amor e a paixão. O amor, filho, é mais duradouro, talvez seja perecível, mas demora a expirar. Alguns não acabam e vão para o barro molhado e degradam-se com a chuva. A paixão é um desejo intenso e irrefreável, como a raiva; e por isso causa tantos arrependimentos. Você não se joga na paixão, nunca. Você espera, e vive, até que ela vire amor, ou vire lembrança. A paixão é aguda, o amor é crônico.
Não digo isso para que não segure a vida em rédeas, mas como um aviso de pressa. Construa tudo que desejar enquanto pode, faça vontades, torne sonhos reais, conquiste. Até que apareça uma moça de saias esvoaçantes e bochechas coradas que transforme tudo numa grande bobagem, um preparativo para a verdadeira vida, a vida com ela.