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sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Respostas Natalinas

“Então venham, minhas crianças, o sol é posto,

E os orvalhos da noite, rebelados;

Suas energias e dias gastos em euforias,

E os invernos e noites disfarçados.”

– William Blake

 

O pequeno Eldert decidira que em seu décimo terceiro Natal esperaria o velho gorducho descer pela chaminé e se encarregaria de uma devida e tão procrastinada sabatina. Dispensaria a advertência de seus pais de que se ele não fosse para a cama na hora esperada, o senhor da barba branca não apareceria e Eldert ficaria sem presentes naquele ano.

A história sobre o Papai Noel, por ele tão venerada em tenros anos, lhe parecera falha quando, no Natal anterior, após beber muita gemada e groselha, Eldert, a caminho do banheiro, fizera um proposital desvio em sua rota, já revelando os futuros traços de gatuno, e flagrara seu pai perto da árvore ornada, com as mãos nas costas e o discurso confuso. Seus amigos da escola não ajudaram na farsa quando lhe informaram – muito embora ele prontamente os tenha descreditado, tachando-lhes de invejosos – que tudo era uma balela milenar.

O relógio já ultrapassara a média noite e todos estavam em profundo sono – até mesmo sua irmãzinha Bregje, com a inocência e crença intactas, habitualmente tresloucada àquela hora no vigésimo quarto dia de dezembro, roncava uma melopeia doce, como se houvesse ceado miúdas fadas cançonetistas. Eldert vestiu as soquetes verdes e douradas e deslizou para o andar de baixo tão furtivo que se sentira um ignominioso ratoneiro em tão sagrada época.

Tomou o cuidado de levar sua mantinha especial estampada com renas deformadas, produto de alguma fiadeira de mão indecisa e possivelmente enferma, onde se esconderia no sofá marrom e surpreenderia, de uma vez por todas, o idoso solidário. Ficou em formação sem grandes problemas: pés, pernas e tronco velados, a fim de disfarçar sua forma pueril; a cabeça recebera redobrada atenção, de forma que apenas nariz e olhos despontassem e lhe conferissem ao menos dois sentidos. A curiosidade, neste ano, superara o risco de ficar sem presentes e ter de ver a irmãzinha, na manhã seguinte, saltitar de lado a lado das salas com a felicidade que sucede os embrulhos rasgados.

O maior obstáculo de Eldert, porém, eram suas pesadas pálpebras, acostumadas a rigorosas rotinas de sono doutrinadas pelos pais, que agora ameaçavam arremessar-lhe na inconsciência onírica a qualquer momento. Apanhou-se duas vezes acordando sobressaltado e imediatamente olhou para fora da janela para se certificar de que ainda estava escuro. Depois, olhou para o relógio e viu as horas, primeiro 1:33, então 2:14, respectivamente: nenhum presente aos sopés arbóreos. Eldert não sabia ao certo a hora exata em que o velhinho apareceria, mas em sua mente impaciente e inventiva, já estava atrasado e, seguindo sua linha de raciocínio e relembrando o parecer dos pais, temeu que a morosidade natalina fosse consequência de sua ousada e subversiva tocaia.

Na terceira vez em que despertou, um rosto róseo preenchido por longos caracóis de algodão estava a centímetros das órbitas cansadas de Eldert. Quando a figura recuou, quase toda coberta em carmesim, olhinhos azuis o espreitavam através de um óculos diminuto de aros redondos e prateados. As bochechas se arquearam como se sorrisse, mas era difícil discernir uma provável amabilidade atrás de tamanha alva penugem. Eldert chegou a considerar um largo sorriso irônico, como se o sábio ancião sentisse um ligeiro êxtase em apanhá-lo em vigília e não ter a obrigação de presenteá-lo naquele ano.

Mas qualquer tempo mais que se preencheria com conjecturas fora interrompido por uma vozinha melíflua:

-- Quais são suas perguntas, pequeno Eldert?

O coração do menino ribombou àquele som mordente. Não era seu pai, nem sua mãe, sequer qualquer parente que já conhecera, como alertaram seus larápios colegas. O semblante era inteiramente genuíno. Eldert, outrora sentenciado, agora experimentava o reboliço no estômago de alguém que tem que enfrentar uma autoridade. Angariou toda a sua coragem e disse em voz trêmula:

-- Você é o Papai Noel?

Eldert se endireitou no sofá enquanto a vetusta silhueta rubra se encarrapitava com dificuldade na poltrona marrom, fazendo ranger os pés de madeira com as inéditas dúzias de quilos a mais que agora tinha de suportar, já que seu pai não pesava mais que um novilho, e o novo ocupante tinha as dimensões de um touro achacado.

-- Nem sou papai, nem meu nome é Noel, pequeno Eldert.

O senhor que Eldert pensou ser Papai Noel tentou cruzar as pernas comicamente, mas, após algumas tentativas frustradas, como se fosse a primeira vez que tentasse fazer aquilo, contentou-se em apoiar os cotovelos adiposos nos apoios, que também reclamaram em ruídos baixinhos.

-- Então quem é você?

-- Me chamo Sinterklaas. Próxima pergunta, pequeno Eldert, não tenho muito tempo – e, após dar uma olhadela rápida para a janela, que dava vista a uma via coberta de montículos brancos e bonecos de neve afeados por anêmicos floquinhos descorados que precipitavam incessantemente – é inverno, mas a noite está estranhamente curta esse ano. – Sinterklaas levantou a manga acolchoada de um dos pulsos e revelou um grande relógio dourado que, mesmo à distância, deixou Eldert boquiaberto: o instrumento não continha apenas dois ponteiros e sessenta traços, mas ao menos uma dezena de setas e quiçá três centenas de risquinhos.

Sinterklaas, ofegante, deu dois piparotes ao ar, como quem apressasse o menino, que ficou ainda mais exaltado diante daquela abrupta admoestação.

-- Então você é real? – foi a frase que saíra da boca infantil. Toda a lista inquisitória que mentalmente construíra previamente agora era afogada pelo inefável sentimento de assombro.

-- Tão real quanto você. Contanto que esteja sonhando. Fique à vontade para se beliscar.

Eldert não levou a incitação a sério e logo deu prosseguimento ao inquérito:

-- Foi você que me deu presentes todos esses anos?

Sinterklaas parecia cronicamente exasperado e impaciente, uma imagem muito distinta daquela por ele erigida por quase uma década, desde que colecionava memórias, onde, com auxílio de ilustrações e descrições idealizadas, imaginava um senhor dócil e jubiloso; a contragosto, o velho parecia disposto a responder todas as perguntas do garoto, mesmo que de modo sucinto e, talvez, salpicado de algum sarcasmo.

-- Não. Foram seus pais. Assim como os pais dos seus vizinhos presenteiam seus filhos e todo pai e mãe ao redor do mundo o fazem. Próxima pergunta.

Eldert não conseguia esconder o espanto, ainda inebriado por aquela imponente presença.

-- O que você faz, então?

O falso Papai Noel consultou o relógio, pigarreando antes de responder:

-- O que estou fazendo agora.

-- E o que é que está fazendo?

Sinterklaas exalou uma pequena nuvem tépida que, ao chegar às narinas de Eldert, tomou resquícios de gemada, xerez e intolerância.

-- Respondendo crianças desobedientes.

Dessa vez, Eldert não sentiu medo e resolveu continuar o debate com alguns graus a mais de autoconfiança.

-- E isso é tudo?

O rubicundo de vermelho coçou a barba e arqueou as volumosas e escuras sobrancelhas antes de responder:

-- Não. Eu realmente entrego alguns presentes. Para certas crianças – apontou com o dedão para a saca rubra estufada com pacotes, pequenos e grandes –, por isso não posso me demorar.

-- E quem são essas crianças?

-- Hmm – Sinterklaas mostrou-se confuso por um momento – tomaria muito tempo para explicar. Seria mais fácil lhe mostrar – e, depois de tentar cruzar os braços mas, bem como acontecera com as pernas, fracassar, continuou – e se eu lhe mostrasse, teria de presentear-te todos os anos, também. – liberou mais uma lufada impregnada de pressa.

-- Quer dizer que eu me tornaria uma dessas crianças que você vai visitar?

-- Algumas já visitei, tome nota – ele alertou com um breve acenar de cabeça e um chicotear de indicador – e, sim, você se tornaria uma delas.

Eldert não pôde deixar de ausentar-se da sala e visitar os recônditos do próprio pensamento, mesmo frente à azáfama de Sinterklaas, e ponderar entre seguir com o interrogatório ou fazer a proposta que acabara de pipocar em sua cabecinha.

-- Então me leve – foi sua escolha.

-- Hmm – Sinterklaas coçou novamente a barba e, de dentro do emaranhado, achou um monóculo prateado com camadas de lentes de todos os tamanhos; colocou no olho esquerdo e esquadrinhou o menino demoradamente, ora sobrepondo, ora removendo lentes. Em certo momento retirou o curioso instrumento e as armações oblongas de cima do nariz e esticou o que restava de pescoço em seu corpo, fazendo a poltrona ulular em desespero.

-- Você não é um candidato adequado – foi categórico.

A frustração não se escondeu no tom de Eldert:

-- Por quê?

Sinterklaas sondou novamente o relógio:

-- Tomaria muito tempo explicar – o gordo ancião pareceu captar a aura macambúzia de Eldert e, pela primeira vez, demonstrou uma centelha de compaixão. – Sinto muito, pequeno Eldert, é tarde demais para você – e após mais dois petelecos no relógio dourado que pesava em seu pulso, levantou-se, dizendo: – e para mim também. Literalmente – e deu uma piscadela maliciosa.

Sinterklaas atravessou a sala e mirou um Eldert absorto e indignado, mas de qualquer forma encolerizado.

-- Mas quem sabe – ele levantou a mão esquerda e prostrou-a na cabecinha infante de Eldert – quem sabe não haja tempo para sua irmãzinha Bregje.

Sorriu-lhe aquele mesmo sorriso de natureza indistinguível e, antes que tudo caísse em escuridão, o menino ouviu a vozinha açucarada oferecer-lhe aquelas remotas palavras:

-- Feliz Natal.

 

*

 

Já não nevava mais quando raios pálidos das primeiras horas criavam um prisma de cores no tapete da sala, ao atravessar os vitrais superiores das fenestras.

Quando Eldert acordou, um rosto conhecido o encarava atrás de armações grossas e escuras, preenchido por uma hirsuta barba castanha. Seu pai levantara antes que Eldert pudesse voltar à cama e fingir que nada havia acontecido.

“Mas”, perguntava-se o garoto, “nada aconteceu mesmo. É justo ser punido por um crime não concretizado?”. O dolo era manifesto, mas poderia a culpa lhe ser atribuída quando a transgressão fora malsucedida?

Caíra no sono duas vezes antes de adormecer definitivamente para então ser reanimado pelo pai ao alvorecer. Não tentou se explicar, já que um gosto amargo lhe trancava as vias. Apenas olhou, melancólico, para o sopé da árvore de Natal e notou que haviam somente embrulhos de laços cor-de-rosa, enquanto seu pai se empoleirava, com um meio sorriso, na poltrona marrom, que estalou como antigos galhos de um pinheiro natalino.